terça-feira, 9 de junho de 2020

como se fosse da família

 ha semanas temos questionado o status quo de várias questões do nosso dia a dia. o isolamento social como estratégia pra desaceleração do contágio noa fez trocar roupas e sapatos por moletom e pantufas, cursos de produtividade logo apareceram com a convidativa procrastinação no sofa, a disparidade das tarefas domésticas se tornou mais evidente com as crianças também demandando atenção integral entre reunião no zoom que bem que podiam ser emails. passamos a higienizar tudo que entra em casa, serviços de delivery dispararam pq é preciso manter a diversidade nutricional.

mas no começo de março, meu marido e eu decidimos pela nosso retorno temporário da capital pro interior por entendermos a dinâmica nociva das grandes cidades: densidade demográfica e logística. ja explico.

minha cidade natal tem 4 linhas de ônibus, a locomoção é massivamente de bicicleta. mesmo em uberlândia, "capital do cerrado", uma pedalada de 1h incluía ida e volta pra cachoeiras fora da cidade onde dava pra ver as poucas dezenas de prédio no centro comercial. essa era minha dimensão urbana ate 2011, quando me mudei pra SP, e descobri a relação inversamente proporcional entre distância e valor do aluguel. podia gastar $500 numa casinha arejada e 2-3h pra chegar no trabalho, ou $1000 numa kitnet a 30min do escritório. sendo ciclista ativa, achei que economizar no transporte público valeria a pena. eu era a única a não surtar ou sofrer de insônia no trabalho. quando fui morar com marido no RJ, de 2012 a 2017, descobrimos outra realidade urbana: era possível morar a 30min tanto da praia quanto do centro, pagando pouco, mas ao pé das favelas. a influência ia pra além dos bailes que ecoavam madrugada a dentro e o intenso movimento nas ruelas de acesso ao lado do meu prédio. quando um dos "donos do morro" foi morto numa operação policial, todo o comércio fechou em luto solidário. sim, alem da segurança privada e impostos pro estado, todos também contribuíam pra segurança coletiva que eles ofereciam.

administrávamos apartamentos de temporada na Zona Sul e com isso tínhamos uma duzia de faxineiras "a disposição". entre aspas porque era preciso uma engenharia logística não so pra conferir os apês na saída do hospede, trocar o enxoval usado com o da lavanderia e organizar chaves e acessos das limpezas. tanto as faxineiras que moravam nas favelas ali perto quanto as da periferia que demoravam horas pra chegar preferiam fazer 6 serviços de 2h num único dia a ter que se deslocarem mais vezes. sair da favela, dependendo do dia, era um verdadeiro jogo de gato e rato. gastar horas em trens e ônibus lotados num trajeto imprevisível também. eu mesma fiz várias dessas faxinas (as vezes rendiam mais do que a gestão de temporada em si, mas principalmente porque o serviço precisava ser feito). era comum eu passar algumas horas conversando com elas durante o serviço e conheci tanto a limitação de perspectiva pela exaustão, quanto a garra e honestidade entranhadas no ato de servir. muitas se sentiram gratas por serem tratadas como gente quando dividíamos uma marmita decente que eu pagava. pausa.

no RJ aprendi muito sobre a real história da nossa colonização. a cultura escravocrata, a pompa de fachada da elite decadente, a submissão em cadeia imposta de senhores de engenho a feitores e desses a escravos que receberam da Coroa a promessa de moradia pos-Canudos e ocuparam os morros, hoje refletida entre o estado corrupto, o empresário rico e a mão de obra subvalorizada. a aberração arquitetônica das entradas de serviço e os uniformes brancos nos prédios herdados por jovens que vivem do ócio que acham natural serem servidos.

de volta a SP, passei a ter contato co culturas de equidade, pude testemunhar projetos emocionantes de alfabetização e empoderamento das equipes de manutenção, que agradeceram por terem finalmente entendido seu papel como essencial e sensível a percepção do cliente.

mas por mais que SP tenha a formação urbana mais heterogênea, a distância social e física se mantém. meu medo maior de contágio está no fato de um isolamento fajuto onde o zelador continua vindo diariamente pra limpar a piscina do prédio (a compra de uma capa pra interditarem foi descartada, afinal, ja "vai ter que pagar o funcionário de qualquer jeito, deixa ele trabalhando, oras!"). pegar transporte público, interagir com dezenas de transeuntes, se expor ao contágio não é o mais grave. isso a gente também faz a cada ida ao supermercado. o problema é a alienação, a desinformação, as políticas públicas que obrigada os trabalhadores de serviço - da faxineira ao caixa de supermercado - serem tao essenciais na manutenção da sensação de qualidade de vida da classe media-alta quanto uma equipe de saúde em momentos de crise sanitária.

daí nossa decisão de voltar pro interior entra e conflito. numa cidade co menor discrepância social aparente, melhor autonomia de locomoção, a pandemia semostra menos grave. e  alienação é fator comum a todos. a realidade do isolamento definitivamente acompanha da qualidade da cultura e da diversidade no ritmo pacato das cadeiras na calada ao fim da tarde, e com isso encontramos a única homogeneidade: estamos tão desconexos do todo que manter o conforto individual supera em absoluto olhar ao próximo com ais empatia. faz parte da família tradicional brasileira se achar superior, imune, privilegiado.

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